A Glória do Amor
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IV domingo da Quaresma, ano B
Jo 3,14-21
Reflexão sobre o Evangelho por Enzo Bianchi
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado, para que todo aquele que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita já está condenado, porque não acreditou em nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta: a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações odeia a luz e não se aproxima dela, para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus.
No domingo passado escutámos no quarto Evangelho o anúncio de que Jesus é o Templo de Deus, isto é, o lugar da comunhão com Deus (cf. Jo 2,19.21). E verificámos, mais uma vez, como a leitura do quarto Evangelho requere esforço para a sua compreensão e da Boa Nova que contém e anuncia. Hoje estamos de novo diante de um trecho de João, em muitos aspetos difícil: João tem uma visão que deve ser entendida para lá do que está escrito, uma visão mais profunda, que não é - podemos dizer - a nossa visão humana, mas a visão de quem tem fé em Jesus Cristo, uma visão inspirada pelo olhar de Deus sobre a vida de Jesus.
João foi testemunha da Paixão e morte de Jesus no Gólgota, naquela sexta feira, vigília da Páscoa, 7 de abril do ano 30 da nossa era. Viu o sofrimento de Jesus, o desprezo de que era vítima por parte dos executores e, sobretudo, o suplício vergonhoso e terrível – “crudelissimum taeterrimumque supplicium”, como o define Cícero (Contro Verre II,5,165) – que era a cruz. Viu esta cena com os seus olhos mas, após a ressurreição de Jesus, com fé, na contemplação e na meditação do acontecimento, consegue interpretá-lo de uma forma diferente da dos Evangelhos sinópticos. Naqueles Evangelhos Jesus anunciou por três vezes a "necessidade" da sua Paixão, morte e ressurreição e pelas três vezes aquele anúncio aterrorizou os discípulos (cf. Mc 8,31-33 e par.; 9,30-32 e par.; 10,32-34 e par.). O quarto Evangelho confirma que por três vezes Jesus falou desta necessitas, mas fá-lo com uma outra linguagem: o que nos sinópticos era infâmia, tortura e suplício na cruz, para João transforma-se em “elevação”, isto é, em Glória.
No nosso trecho ressoa o primeiro dos três anúncios feitos por Jesus: “È necessário que o Filho do Homem seja elevado”. Efetivamente Jesus, suspenso na cruz, tinha sido elevado da terra, mas não era a esta elevação que João se queria referir mas sim à de ser elevado gloriosamente por Deus, ser glorificado, ser revelado na sua Glória. Para João "ser elevado" (verbo hypsóo) é também “ser glorificado” (verbo doxázo: cf. Jo 7,39; 8,54, ecc.), estar na cruz é estar à direita do Pai. Por isso João diz também “Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem”, ou seja quando O haveis fisicamente posto na cruz, “então ficareis a saber que Eu sou o que sou (egó eimi: cf. Es 3,14)” (Jo 8,28), que Eu sou como Deus. E ainda: “quando for erguido da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). A hora da elevação é, portanto, a hora da glorificação (cf. Jo 12,23; 13,31-32), a hora da Paixão e da Cruz. No quarto Evangelho, cruz e Páscoa são o mesmo mistério e a hora da Paixão é a hora da Epifania do amor.
Devemos confessar que este olhar de João sobre a cruz não é facilmente aceite por nós homens, contudo, esta é a verdadeira e profunda compreensão da cruz de Jesus: a cruz foi um suplício mas foi também o levantar do véu sobre como Jesus “levou o seu amor (pelos seus) até ao extremo (eis télos)” (Jo 13,1); foi uma maldição de morte de Deus e dos homens (cf. Dt 21,23; Gal 3,13), crucifixo no ar porque Jesus não era digno nem do céu nem da Terra, no entanto exatamente na cruz Ele reconciliava céu e terra, fazendo cair todas as barreiras e abrindo o Reino à Humanidade, levando a Humanidade a Deus (cf. Ef 2,14-16). Na cruz morria um homem só e abandonado mas este homem dizia que “ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” (cf. Jo 15,13).
Esta é a leitura paradoxal da cruz feita por João. Este é o Evangelho que Jesus revela a Nicodemos, um especialista das Escrituras que, no entanto, Jesus, define como “ignorante” (cf. Jo 3,10): um “Mestre em Israel” que não conhece a ação de Deus na sua mais profunda verdade. Para lhe explicar esta necessidade da Paixão e morte do Messias, Filho do Homem, Jesus procura uma comparação com um facto que aconteceu a Israel no deserto depois da saída do Egipto. Segundo o livro dos Números, os Hebreus tinham sido atacados por serpentes mortíferas e Moisés, conforme o Senhor indicara "fez uma serpente de bronze e fixou-a sobre um poste": "quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, vivia" (cf. Nm 21,4-9). Esta história antiga é recontada de forma diferente pelo Livro da Sabedoria identificando a serpente de bronze como "um sinal de salvação" (Sb 16,6): “quem se voltava para ele era curado, não pelo que via, mas por ti, salvador de todos" (Sb 16,7).
Compreendamos bem as palavras de Jesus, que são um convite a olhar o Filho do Homem, elevado na cruz como a serpente por Moisés: quem olha para o crucifixo encontra salvação e vida. Esta elevação do Filho do Homem é sinal de que "Deus amou tanto o mundo", esta nossa humanidade, que lhe deu o seu Filho único, isto é, deu-se a si próprio. Deu-O enviando-O ao mundo, como Filho que se torna homem entre os homens, não para julgar o mundo mas para o salvar porque “quer que todos os homens sejam salvos” (1Tm 2,4); não quer condenar o mundo mas quer que todos "tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10,10).
Este olhar de João sobre a paixão e morte de Jesus parece-nos quase insustentável, porém, é o olhar que nos permite ver numa história de morte uma história de amor, uma história gloriosa do amor humano vivida por Jesus, que narrou desta forma e para sempre (exeghésato: Jo 1,18) o amor de Deus.